OS PRIMEIROS HABITANTES DO ATUAL TERRITÓRIO DE ALTOS - PARTE 2: OS INDÍGENAS TAPUIA
Haviam no Centro-Norte do Piauí Colonial várias tribos Tapuias. Saiba mais sobre elas!
Falamos muito, em artigo anterior, que o centro-norte do Piauí, onde se encontra a área atualmente pertencente ao Município de Altos, era habitado (ao menos de forma predominante) por índios tapuia. Ocorre que sobre a designação de Tapuias, se encontravam muitos povos culturalmente diferentes uns dos outros, de forma que não podemos ter em mente, quando falamos de Tapuias, um grupo de indígenas com costumes, tradições, hábitos, cultura, religião, tradições ou línguas iguais.
O que ocorre, quando falamos em povos indígenas no norte e centro-norte do Piauí, é que haviam aqueles que falavam a língua geral (que por ser geral era compreendida pela maioria dos indígenas, e, depois, já no período colonial, passou a ser compreendida pelos viajantes europeus do período colonial, por ser a língua falada por uma maioria dos que tiveram contato com os povos europeus) eram os povos Tupi, enquanto os demais, que falavam outras inúmeras línguas minoritárias, que quase não foram compreendidas pelos antigos viajantes europeus, eram considerados como povos de língua travada, os Tapuia. Não é bem que tivessem a língua travada, apenas por não falarem a língua geral indígena, eram considerados assim por quem não compreendia seu idioma. Ainda, além dessa significação, o povo Tupi (que falava a língua geral) compreendia os Tapuia como “o outro”, “o diferente”, “o inimigo”.
Os Tapuias, assim, não eram propriamente um grupo étnico específico, não eram uma nação indígena e nem ao menos uma tribo. Era uma forma preconceituosa de denominar “os outros” que não falavam a língua Tupi (incluindo aí vários grupos étnicos, várias culturas), e que, no mais das vezes, habitavam o interior do Estado.
Para os indios Tupy, Tapuya era qualquer Índio que náo fosse Tupi - o outro, o diferente, o que náo se expressa na língua geral ou qualquer dos seus dialetos, mas fala na língua travada. Significa até mesmo o inimigo. Depois o colonizador empregou o termo para se referir a gente inferior, espécie de bárbaro americano. De qualquer modo, Tapuya é urna denominação política, em certo sentido entendida e aceita como resistência. Também havia os Tabajara e os Potyguara do grupo Tupi. (CORDEIRO, José. Os índios no Siará: massacre e resistência.Fortaleza, Contexto, 1989. p. 13)
De acordo com José Camillo Filho, dentre os Tapuias piauienses figuravam “(…) os cupinharões, aroás, guanarés, barbados e teremembés, os últimos divididos em três ramos – crateús, potis e aranhis – eram do grupo tapuia”. (CAMILLO FILHO, José. Pequena História do Piauí. 2. ed. Teresina: COMEPI, 1986. p. 34). Com base em outros autores, podemos apontar ainda como Tapuias, os Longás, os Anaçus, os Jenipapos, os Tocarijús, dentre outros.
Grande parte dos povos Tapuio que habitaram o Piauí viviam principalmente ao longo da extensão do rio Parnaíba, junto ao território maranhense, seguindo por uma extensa faixa que vai do litoral à foz do rio Gurguéia, no atual sul do estado. (PEREIRA, Antonio Alves. O ressoar das Vozes que Romperam o Silêncio: Aspectos históricos e culturais dos povos indígenas Tabajara e Tapuio de Nazaré. São Luís, 2023. p. 36)
Não apenas ao longo do Parnaíba viviam os Tapuio, mas também ao longo de seus afluentes e dos afluentes destes, como, por exemplo, o Longá, que é afluente do Parnaíba e tem como afluente o Surubim, que nasce em Altos.
Os Tremembés, que viviam do litoral até o Meio Norte, descendiam dos Cariri, no dizer de João Gabriel Baptista (1994, p. 85), e, por outro lado, deles se originavam Aranhis, Crateús e Potis (Bastos, 1994, p. 110). Tremembés e seus sub-ramos viviam ao Norte do Piauí (Camillo Filho, 1984, p. 34).
Odilon Nunes também afirma que "Os Tremembés eram Tapuias do ramo Cariri" (...) ao passo em que, mais a frente, afirma ainda que "A maior parte dos índios tapuia do Piauí eram do ramo cariri, cuja palavra quer dizer tristonho, calado, silencioso" (NUNES, 2007, p. 62). No mesmo sentido, afirma BASTOS (1994, p. 110).
Mesmo alguns considerando que tenham dado origem aos Tremembés, o Grupo Cariri chegou a coexistir, ainda com essa denominação, com estes seus supostos descendentes, através de outros representantes.
A par dessa posição dos autores piauienses, há outros pesquisadores, de estados vizinhos, que, bem fundamentados, informam que os Tremembés não descendem dos Cariri, e, assim, constituíriam um ramo à parte.
Sabe-se que os Tarariú ou Tarairiú possuem muitas caracteristícas comuns com os Cariri e, também, com os Tremembés, e, por muito tempo, efetivamente, pensou-se que eles pertenciam ao grupo Cariri, ou mesmo ao ramo dos Tremembé, mas estudos recentes apontam que os Tarairiú se aproximam mais do grupo Jê, e, apesar dessa aproximação com os Cariri e com os Jê, seriam na verdade uma família linguística à parte. Todavia, todos descenderiam do grupo Macro-Jê.
Talvez, contudo, diante disso, é que muitos autores piauienses, por vezes, no passado, classificaram Alongás, Jenipapos, Tocarijús (indígenas da família Tarairiú) como Tremembés ou Cariris, quando, na verdade, são uma família à parte, os Tarairiú, segundo Sônia Maria Campelo Magalhães (2011).
O que se pode dizer, é que historicamente, em todo o Nordeste, e não apenas no Piauí, tem-se visto que Cariris (ou Tremembés em lugar destes) e Tarairiú sempre guardaram relações de vizinhança. Pude perceber essa relação de proximidade e vizinhança tanto no Piauí, como em outros Estados. E mesmo quando migravam de um lugar para outro, parece que se faziam acompanhar pelos vizinhos, de modo que essa proximidade entre os grupos, provocava muitas semelhanças culturais uns com os outros.
No dizer de Juvandi de Souza Santos (2009)
O Critério classificatório baseado nas diferenças culturais – não existe uma unidade cultural entre os índios do Brasil, o que geralmente acontece é que povos de etnias diferentes, mas que vivem numa região contígua, podem apresentar alguns traços culturais parecidos, como os Cariris e Tarairiús da Paraíba, criando certa unidade geográfica cultural, de acordo com a Antropologia. (op. cit. p. 169)
Para o mesmo autor, se não derivam de um tronco comum, certamente aprenderam muito uns com os outros, mas é possível que pertençam ambos, “Cariris e Tarairiús (...) ao tronco-linguístico-cultural Macro-Jê” (op. cit. p. 173).
Mais adiante, continua seu raciocínio dizendo que “Acreditamos, enfim, ter havido uma certa homogenização cultural entre vários grupos Tapuias dos Sertões do Nordeste, havendo uma certa influência mútua via contato esporádico e contínuo, desenvolvendo semelhanças, mas se reconhecendo como povos diferentes, mas cada grupo vivendo numa dada área cultural” (op cit. p. 174).
Tomás Pompeu Sobrinho (1952), afirma ainda que
Sabe-se que depois da conquista, com a ocupação portuguêsa do litoral pernambucano, baiano e fluminense, processou-se uma considerável migração de tupis para a região norte do Brasil, através dos sertões, por entre gês e caraíbas, que atingiu as margens do rio Amazonas e aquelas costas do Pará, bem como as do Maranhão, Ceará e provavelmente também do Rio Grande do Norte, anteriormente ocupadas por indígenas de procedência muito antiga, Tarairiús e Tremembés, principalmente. (p. 152)
No litoral do Piauí, mesmo depois da chegada dos Tupis, os Tremembé conseguiram manter seu domínio sobre a maior parte da costa piauiense.
Jureni Machado Bitencourt Pereira (1989), aponta que, no Centro-Norte Piauiense as relações entre Tremembés e Tarairiú (Alongás e Tocarijus) eram pacíficas:
Não se empenhavam os Tremembés em lutas contra seus vizinhos Tocarijús e Alongás. (PEREIRA, Jureni Machado Bitencourt. Apontamentos Históricos da Piracuruca. Teresina: COMEPI, 1989. p. 44)
Contudo, o fato desses indígenas conviverem em paz, não significa que isso não tivesse algum custo, e, muito menos significa que, apesar das constantes relações de vizinhança, estivessem sempre juntos como se fossem uma família só. De acordo com Juvandi de Souza Santos:
É o meio que nos leva a pensar de acordo com ideias e valores desse meio, sem que sejamos produto do meio. As normas sociais de um grupo criadas mediante a justificativa da maioria levam-nos a agir de forma comum. Quando somos obrigados a aceitar o outro de forma pacífica ou imposta, como ocorreu com os índios Tapuias da Paraíba (Cariri e Tarairiú), torna-se penoso, quando não doloroso, reacionário, principalmente para o grupo considerado mais fraco.
(…)
A união desses grupos se dava apenas em ocasiões especiais: casamento, morte, guerra, reação ante o colonizador. Nessas comunidades, de forma meio genérica, prevalecia os casamentos consanguíneos, pois ninguém queria ir morar distante de seus parentes próximos, entre estranhos. Vários grupos humanos do Brasil pós-contato podem muito bem ser enquadrados nesse sistema, ao ponto de serem vistos, graças às recorrências, como a forma típica de união em quase toda a América do Sul, especialmente na área de domínio da Floresta Tropical. (SANTOS, Juvandi de Souza. Cariri e Tarairiú: culturas tapuias nos sertões da Paraíba. Porto Alegre, RS: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - PUCRS, 2009. p. 162-163)
As andanças desses povos lhes permitiram algum domínio sobre a região, que conheciam muito bem, eis que viviam beirando rios e riachos, sempre perto da água, o que lhes fez percorrer o interior do Centro-Norte Piauiense, inclusive em áreas próximas a Altos ou no território atualmente pertencente à cidade de Altos.
Por conhecerem bem o lugar, puderam resistir bravamente, no período colonial, aos colonizadores europeus., e, por isso, o Piauí, em especial no Centro-Norte, foi uma das áreas em que a colonização mais enfrentou resistência indígena.
Atesta isso Barbosa Lima Sobrinho, verificando a corrente de pretensos colonizadores do Piauí que tentavam dominar o território no sentido sul-norte e não conseguiam devido a oposição dos índios:
Em fins do século XVII, não eram realmente fáceis as ligações do Piauí com o exterior. Os caminhos do litoral continuavam precários, pela presença dos aguerridos longases e teremembés. (LIMA SOBRINHO, Barbosa. O DEVASSAMENTO DO PIAUÍ. São Paulo Editor: Cia. Ed. Nacional Ano: 1946. p. 102)
Compreende-se, diante dêsses fatos, a demora observada no devassamento da região do Poti e do Longá, em relação com as outras zonas do Piauí. Em vez de ter sido a primeira conquistada, com a presença de um têrço paulista em 1662, ou 1663, figura justamente entre as últimas, o que leva a concluir haver, nessa circunstância, uma contestação daquela suposta precedência. (op. cit. p. 126)
Ainda no sentido de que os Cariri e os Tarairiú teriam elementos culturais em comum, a opinião de Juvandi de Souza Santos, para quem eles não seriam propriamente uma nação, mas uma pseudo-nação, ou um modelo polissegmentado, embrionário, de nação:
(…) Por conveniência, continuaremos a adotar a terminologia nação quando nos referimos aos grupos humanos Cariris e Tarairiús, mesmo sabendo existirem tais ressalvas, pois é próprio, segundo Mauss, que sucinta brechas. Ele cita três conjuntos estruturais básicos para aceitar um agrupamento humano como nação; 1. certa integração social e fronteiras bem definidas; 2. unidade econômica, com códigos, impostos, taxas, confiança de unidade de grupo, etc.; 3. uma unidade política, administrativa e jurídica e, o que é mais importante, uma vontade de transmitir essas características as gerações futuras. Analisando os grupos Cariris e Tarairiús, a partir do exposto, seria complicado atribuir-lhes o conceito de nação, mesmo que algumas dessas características tenham sido identificadas: línguas com traços comuns, e uma estética moral e material, sendo estruturada a partir dos elementos da tradição cultural do grupo em si e a existência de estilos próprios.
A etnicidade depois de formada se perpetua por séculos e séculos através das gerações. Nada mais correto de ver os grupos étnicos Cariris e Tarairiús, como sendo os descendentes diretos de grupos pré-históricos que habitaram a região em tempos remotos. A etnicidade é vista como sendo o modelo básico para a construção da nação, sendo que o grupo tem uma “raiz étnica comum, seja ela real, imaginada, imposta ou construída” (COSTA, 2007: 35).
É importante acrescentar que Gellner (1993: 19-20) afirma que quando “dois homens pertencem a mesma nação se e só se reconhecem como pertencentes a uma mesma nação. Por outras palavras, as nações fazem o homem”. Quando os membros de uma comunidade indígena se autoreconhecerem como tais, ou que falam uma mesma língua, transformam-se numa nação, como também, é preciso que outros grupos com línguas diferentes os vejam diferentes, também se reconhecendo como tais.
Portanto, etnicidade tem um caráter meramente mítico, simbólico porque só muda lentamente. A etnicidade depois de formada, tende a ser durável sob, claro, condições normais que viva o grupo.
Assim visto, a etnia ou etnicidade é vista como um dos elementos básicos formador de uma nação, pois congrega as características culturais de um povo, marcadoras de um dado grupo social, sendo transmitidas através das tradições de geração para novas gerações. (SANTOS, Juvandi de Souza. Cariri e Tarairiú?: culturas tapuias nos sertões da Paraíba. Porto Alegre, RS: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - PUCRS, 2009. p. 87-88).
Sobre os contatos culturais dos Cariri com outros povos, assim nos fala Cláudio de Albuquerque Bastos (1994):
Os cariris constituem ainda problema obscuro para os etnólogos. Uns classificam-nos como grupo autônomo, outros como mestiços resultantes de aruaques e caraíbas, e ainda outros, mistura de tupis e tapuias. Em verdade, há contatos culturais entre os cariris e os aruaques e caraíbas. (p. 110)
Vale lembrar, assim, que a cultura não é algo estático, e a proximidade geográfica entre povos, além de contatos por outras razões, pode permitir a troca de elementos culturais entre diferentes povos indígenas, de modo que consideramos que as semelhanças culturais entre diferentes tribos e nações é própria da convivência entre esses povos, seja essa convivência pacífica ou não.
Veja-se que BASTOS (1994) menciona ainda, na citação acima, serem os cariri ainda "um problema obscuro para os etnólogos". Isso se deve, ressalte-se, ao fato de haverem poucas informações sobre as origens étnicas desse povo, como destacam ainda, inclusive, Thomaz Pompeu Sobrinho e Studart Filho, pesquisadores cearenses, reconhecem essa "obscuridade" quanto aos Cariri, tanto em relação à sua etnologia, quanto em relação à sua distribuição espacial. Justamente por isso, inclusive, é que o autor piauiense João Gabriel Baptista
Diante dessa obscuridade, é que se dá margem para entendimentos diversos, como de Thomaz Pompeu Sobrinho, inclusive muito bem fundamentado, no sentido de que os Cariri não seriam ascendentes dos Tremembé e que estes fariam parte de um grupo étnico à parte:
A muito falada nação Tremembé ou Taramemnbé, que habitava a costa do Ceará e delta do Parnaíba, estendendo por vêzes o seu domínio ao litoral do Maranhão, constituia seguramente uma família distinta ainda não catalogada. De algumas palavras que conseguimos colhêr d'o falar dêsses índios ribeirinho do Atlântico verifica-se indubitàvelmente que a sua língua não se pode enquadrar na família Tarairiú e muito menos nas famílias Kariri e Tupi-guarani. O pouco que se conhece da sua cultura é característico e contribui para repelir qualquer tentativa de ajustar o índio dêste grupo a qualquer dos demais acima referidos (POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Línguas Tapuias desconhecidas do Nordeste: alguns vocabulários inéditos. 1958, p. 8)
No mesmo sentido, sobre os Tremembés, STUDART FILHO (1965):
Tribo alguma do Brasil se mostrou tão revel à incorporação em qualquer dos grandes grupos etnolingüístico em que os nossos antropólogos ordinàriamente dividiam os aborígines brasileiros; nenhuma acendeu, em tôrno de si, tantas controvérsias, antes de os especialistas chegarem, como solução definitiva, a constituir, com ela, uma entidade línguo-cultural autônoma. (STUDART FILHO, Carlos. Os Aborígenes do Ceará. Fortaleza, Ceará: Instituto do Ceará, 1965. p. 72)
Ainda, no artigo Pré-HIstória Cearense (1952), o mesmo POMPEU SOBRINHO informa ancestrais distintos para os Cariri e os Tremembé. Ali, o autor aponta que as duas primeiras correntes migratórias vindas de outros continentes a chegarem à América entre os primeiros povoadores da América (e, no que nos interessa, à América do Sul), na época constituídas de Australóides primitivos (primeira corrente migratória) e outros Australóides mais avançados, teriam os três tipos étnicos seguintes: I - Láguidos; II - Huárpido; III - Patagônidos. Desses, o autor sustenta que os Tarairiú que habitaram o nordeste do Brasil descendiam dos Láguidos. Uma terceira corrente migratória, descrita pelo autor no mesmo trabalho, deu origem na América do Sul aos Fuégudos e aos Nordéstidos, sendo que os ancestrais desses, vindos nessa terceira corrente migratória teriam chegado à América do Sul mais ou menos no Mesolítico (transição entre o Paleolítico e o Neolítico). Dos nordéstidos, descenderiam os Tremembé. Em uma quarta corrente migratória, vinda de outros continenentes para as Américas, teriam chegado ao continente americano os protomalaios neolíticos (por volta do 8º ao 2º século do 3º milênio anterior ao século XX, dando origem, na América do Sul, aos Brasílidos. Por sua vez, os Brasílidos teriam dado origem aos indígenas Tupi e Cariri. Dessa forma, no nordeste do Brasil, os ancestrais dos Tarairiú seriam muito mais antigos. Depois teriam chegado os ancestrais dos Tremembé, e, por último, os ancestrais dos Tupi e Cariri. (POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Pré-História Cearense. Revista do Instituto do Ceará, 66, Fortaleza, 1952).
Ao se optar por acatar as idéias de POMPEU SOBRINHO, desconstitui-se, insofismavelmente a tese sustentada por autores piauienses no sentido de que os Cariri seriam ancestrais dos Tremembé, eis que, segundo esse autor cearense, os Tremembé teriam chegado a essa região muito tempo antes dos Cariri.
No mesmo sentido, de que os Tremembé não descendiam dos Cariri, vê-se o seguinte entendimento de Studart Filho (1965):
Taunay, seguindo a Capistrano, afirma pertencerem os Tremembés ao ramo Cariri, interpretação hoje considerada inteiramente falsa. (p. 77)
Dessa forma, o que pode ter acontecido para viciar o pensamento de autores piauienses, que sustentam serem os Cariri ascendentes dos Tremembé, é que por aqui as idéias de Taunay e Capistrano tenham-nos influenciado de modo a dizer que os Tremembé derivariam dos Cariri, ao passo em que, se seguirmos o pensamento dos autores cearenses, somos levados a crer que na verdade as semelhanças culturais entre uns e outros, no máximo, se devem ao intercâmbio entre as culturas indígenas, dado a proximidade espacial entre elas.
O pesquisador altoense, hoje radicado no Ceará, José Luís de Rosalmeida, que anda a investigar a história dos indígenas Cariri para o livro que está a escrever com o título "ENKA - Enciclopédia Kariri: Cultura, Línguas, História e Personalidade", chegou a dizer-me que, na verdade, os Cariri, nunca teriam chegado ao Piauí. No máximo a regiões próximas. Até apresentou-me uma fonte de que os Cariri teriam chegado ao Piauí, mas em sua compreensão, essa única fonte, para ele um equívoco, e, uma vez confrontada com outras, não seria suficiente a afirmar, com certeza, a presença dos indígenas Cariri no Piauí. O seu raciocínio não é descabido: João Gabriel Baptista (1994), afirma que os Cariri, pelo que se sabe, tinham "localização duvidosa".
A par disso, contudo, BASTOS e ODILON NUNES, conforme exposto anteriormente, afirmam que a maior parte das tribos piauienses eram do ramo Cariri. Assim, compreendemos que não se pode retirar do Piauí a presença dos Cariri, sem maiores provas. Até pela própria fonte citada por José Luís de Rosalmeida, que é o texto de Pedro Traques de Almeida Paes Leme (1976) em sua obra Nobilarquia Paulistana Histórica e Genealógica, donde se lê o seguinte:
Nos poucos mezes do governo de Mathias da Cunha, recorreram a elle os moradores da Capitania do Ceará pelos annos de 1687 ou 1688, pedindo socorro contra os gentios daqueles sertões que tinham feito grandes damnos na cidade e seu reconcavo. (…) Mandou a S. Paulo, e fez o mesmo o seu sucessor o Exmo. arcebispo D. frei Manoel da Ressurreição (que entrou no governo geral do Estado pela morte de Mathias da Cunha na Bahia em 24 de Outubro de 1688), ordenando por carta sua de 30 de Agosto de 1689 a Thomaz Fernandes de Oliveira, capitãomor e governador da capitania de S. Vicente e S. Paulo o socorro que tinha mandado ir dos paulistas a cargo do governador, o mestre de campo Mathias Cardoso de Albuquerque, para a guerra dos barbaros gentios do Rio-Grande. // Com efeito formou seu terço o mestre de campo Mathias Cardoso de Almeida, no anno de 1689. E se pôs em marcha (…) porém como a gente de seu terço não era suficiente em número para guerra, deixou ordenado em S.Paulo a João Amaro Parente, capitão-mor do seu regimento, fosse formando os mais soldados da guerra e seus capitães (…) e irem incorporem-se com elle mestre de campo Mathias Cardos no Rio São Francisco. Com efeito o capitão-mor João Amaro formou em S. Paulo as mais companhias de infantaria, que ainda faltavam para o terço de mestre de campo Cardoso; e entre os capitães foi João Pires de Brito, natural e nobre de S.Paulo, que á sua custa formou a companhia, da qual lhe passou patente de capitão de infantaria, que depois a confirmo o Exm. Arcerbispo como governador geral do Estado. (…) Incorporado o capitão com o governador mestre de campo no Rio de São Francisco, nelle ainda se deteve o exercito paulista quatro mezes enquanto chegava a ordem do arcebispo governador para marchar este corpo e dar principio á guerra intentada. (…) deixou [Mathias Cardoso] totalmente livre a campanha do Rio-Grande e Ceará (…) a guerra durou nesta campnha até 25 de Abril de 1694, em que o mestre de campo governador Mathias Cardoso se retirou para sua casa (…) // Com grande magoa lamentamos a falta das notícias dos capitães que tiveram nessa guerra, e conquista do RioGrande e Ceará com o governador mestre de campo Mathias Cardoso de Almeida, e muito apenas encontramos os documentos que nos deram a certeza de ser o capitão deste regimento o dito João Amaro, e um dos capitães de infantaria o dito João Pires de Brito,o qual, acabada a guerra do Rio-Grande e Ceará, passou para a do Piauí, onde se achava quando Manoel Alvares de Moraes Navarro, natural de S.Paulo, mestre de campo de um terço de infantaria paga e governador da campanha do Rio-Grande por Sua Magestade em 1701, certificou que o governador geral D. João de Alencastro proveu no posto de sargento-mor do terço do dito mestre de campo Navarro ao dito João Pires de Brito a tempo que assistia no Piauí em mais de duzentas leguas de distancia, onde chegandolhe a noticia desta promoção viera tomar posse do dito posto; mas foi já a tempo que, por se julgar retirado já para S. Paulo dito capitão Pires, se havia promovido o dito posto de capitão de uma das companhias do referido terço para delle passar ao de sargento-mor na primeira vacante pelos seus grandes merecimentos e serviço assim na guerra do Rio Grande e Ceará, como na guerra contra o gentio Quiriri das ribeiras de Itahim, e Piracuruca na capitania do Piauí. Todo o referido consta das certidões e fés de offício do capitão João Pires de Brito, que se acham lançadas na nota de tabellião da villa de Taubaté, e das quaes tivemos em nosso poder uma cópia authenticada. // E os mesmos paulistas, que foram triunfantes nesta custosa conquista, foram também os que abriram os transitos que até hoje se segue com communicação de todas estas três capitanias [Rio Grande, Ceará e Piauí]. E dos mesmos cabos da conquista passaram do RioGrande e Ceará se passaram para a coquista do Piauí, onde era capitão-mor o paulista Francisco Dias de Siqueira, o qual tendo penetrado o sertão de São Paulo, sua patria, até o Maranhão, onde se achou pelos annos de …. (sic) dalli tendo incorporado o seu partido com vários indios catholicos das missões daquelle Estado, penetrando o inculto sertão, veiu continuar guerra no Piauí contra os barbaros indios das nações Precatez Cupenhros, Curatéz e Canapuruz, que todos ficaram conquistados até o anno de 1701, em que se retirou o capitão João Pires de Brito;como tudo vimos nos serviços já referidos do mesmo capitão. (LEME, 1976, Tomo II, p. 57 e 58)
O próprio conterrâneo José Luís Rosalmeida nos informa ainda de que essa informação foi endossada pelo historiador Pernambucano Francisco Augusto Pereira da Costa, em sua a Cronologia Histórica do Estado do Piauí (COSTA, [1909] 1974, p. 65)) e ainda por Afonso Taunay, em A Guerra dos Bárbaros ([1936] 2010, pp. 68), como se vê, por exemplo, na obra do Padre Cláudio Melo (2019), João Gabriel Baptista (1994) e Cláudio de Albuquerque Bastos (1994).
Contudo, José Luís Rosalmeida (2024), confrontando citações de pesquisadores e documentos históricos informa que não conseguiu encontrar outra referência à presença de índios Cariri no Piauí, que não a que menciona o embate com esses índios na região de Piracuruca, e, ainda assim, questiona isso como, no mínimo estranho, por duas razões: "1) a distância entre as ribeiras do Itaim e do Piracuruca, entremeados pelo Rio Poti; e 2) ser a única referência a comunidade Kiriri em solo piauiense". À primeira razão de estranheza, compreende que é possível sanar considerando-se que "a informação (...) não se refere ao rio Itaim afluente do Canindé, mas ao próprio Rio Poti, então conhecido, também, como Itaim-açu, ou “Grande Itaim”. Isso dá mais sentido à citação, pois as cabeceiras do Poti (Itaim-açu) são bem mais próximas das cabeceiras do Piracuruca do que as cabeceiras do Itaim, afluente do Canindé". Já quanto à segunda causa de estranheza compreende que ela permanece pois "as ribeiras do Piracuruca eram dominadas pelos Alongá e pelos Tacariju. Pelas ribeiras, quer do Poti (Itaim-açu), quer do Itaim afluente do Canindé, passaram diversas etnias, mas, além da informação de Pedro Taques Nunes, não encontramos entre elas nenhuma referência a qualquer grupo identificável como kariri".
Contudo, é de se ver que a "Carta de D. Matias da Cunha a El Rei de Portugal" (1892) lista as seguintes aldeias Cariri no nordeste:
Anassus e Alongás, Aruás ou Oruás. Arraes ou Orises, Acumés, Aroatis ou Coroatises, Jaicós ou Jucás, Corsiás no Piauí; Icós, Ubatés, Meatans e Paiacús, no Ceará; Teremambés, Urius ou Arius, no Ceará; Janduís no Rio Grande do Norte; Chocós ou Vouvés na Paraíba; Umans, Chucuru ou Xuk,uru em Pernambuco, na s erra do Ararobá; Pankarú, Unhanhú ou Garanhub, Karnijó ou Fulniô, ainda em Pernambuco; Akonans do Vale do São Francisco, em Penedo, no Estado de Alagoas. (ANTUNES, Clovis. Wakona-Kariri-Xukuru: aspectos sócio-antropológicos dos remanescentes indígenas de Alagoas. Universidade Federal de Alagoas / Imprensa Universitária, 1973. p. 34)
Referido documento, no entanto, coloca como Cariris tribos que não o são, como é o caso dos Alongás, no Piauí, e dos Janduís, no Rio Grande do Norte, ambas, como dissemos, Tarairiú. Do mesmo modo, inclusive, é possível que tenha cometido um equívoco quanto a outras.
Jose Luís Rosalmeida chega a listar um texto de Afonso A. de Freitas (Distribuição Geográfica das Tribus Indígenas na época do descobrimento, São Paulo, 1914), que coloca como Cariri os indígenas piauienses das tribos Canindé e os Tacaujús, mas faz críticas a este autor pelo mesmo motivo que acima critiquei a "Carta de D. Matias da Cunha a El Rei de Portugal" (1892), dizendo sobre Freitas que este "confunde como kariri povos de etnias diversas como os Tarairiú (Sucuru, Paiacu e os próprios Canindé), e mesmo os Alongá (Gamelas), como os “Tacaujus” (Tacarijus)".
Faço algumas ressalvas ao entendimento de José Luís Rosalmeida: 1) O fato do conterrâneo ter encontrado apenas uma fonte confiável a mencionar os Cariri em solo piauiense não afasta a certeza externada por muitos de que essa tribo por aqui esteve (e, por isso, até prova mais firme em contrário, embora seu raciocínio não seja desarrazoado, continuarei a adotar o entendimento de que os Cariri estiveram no Centro-Norte do Piauí); 2) Por outro lado, reconhecendo que muitos documentos e estudos antigos apresentam como Cariri indígenas de etnias distintas, sou levado a crer que a família Cariri, talvez, não seja tão numerosa no Piauí quanto diziam os autores piauienses citados ao inicio desse texto; 3) quando afirma que os alongás não são Cariri, chega a classificá-los como gamelas, ao passo em que eu os compreendo como Tarairiú, e chega a tratar como sub-ramo dos alongás os Tacarijus, quando esta, na verdade, se trata de outra tribo Tarairiú piauiense, vizinha aos Alongás. Ambos, Alongás e Tacariju seriam também Tarairiú, como ele aponta que seriam os Canindé (e são de fato). Além destes, no Piauí, seriam Tarairiú os Jenipapo, que no Piauí vivem vizinhos aos Alongás.
Ao confrontar, via whatsapp, o conterrâneo José Luís Rosalmeida com a informação de que os Alongás não seriam Gamelas, pois os Gamelas (sub-ramo dos Timbira) viviam bem mais ao sul do Piauí, ele admitiu-me essa possibilidade de que, de fato, não o fossem, mas também acreditava que não fossem Tarairiú. Chegou, contudo, a admitir que lhe parecia, com um certo grau de certeza, que "os Alongás e os Tocarijus eram parentes".
Em demonstração de que, no Piaui, os Tarairiú habitavam regiões situadas no Centro-Norte do Piauí, que inclusive compreende a área do sertão dos alongazes e da antiga Vila de Campo Maior, a opinião de Studart Filho (1965), que dá a localização dos Tarairiú no Piauí:
Êstes (...) poster!ormente, se disseminaram por todo o Nordeste, ocupando a imensa área compreendida entre aquêle divisor de águas, o Rio S. Francisco e o Oceano, isto é, os territórios dos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Há indícios de que hordas desta família viveram também no Piaui, sobretudo ao norte do Rio Poti, e ao sul do leito do Rio do Salitre. (STUDART FILHO, Carlos. Os Aborígenes do Ceará. Fortaleza, Ceará: Instituto do Ceará, 1965. p. 87).
A quem pegar um mapa do Piauí (no meu caso usei o google maps) eu já digo que irá verificar que essa área ao norte do Rio Poti e ao Sul do Rio (na verdade riacho) do Salitre, ressalte-se, compreende, dentre outros municípios vizinhos, o atual Município de Altos, e boa parte, senão quase tudo, daquilo que, já no período colonial, um dia foi chamado Vila de Campo Maior. Vale ressaltar que nos dias atuais o Salitre não é um rio, mas um riacho. Mas é o único corpo d’água com esse nome que pudemos encontrar com o nome Salitre que fica ao norte do Poti. E isso, inclusive, só reforça o entendimento de que Alongás, Jenipapo e Tocarijús eram da família línguo-cultural Tarairiú, bem como que esses indígenas habitavam Altos e regiões próximas. Altos fica ao sul do Salitre e ao Norte do Poti.
Sabe-se, inclusive, que os Jenipapo, que eram vizinhos dos Alongás, e, se encontravam nessa mesma faixa ao sul do Salitre e ao Norte do Poti eram dessa família línguo-cultural Tarairiú, como o apontam pesquisadores de outros Estados:
(…) . No entanto, pela falta de material para uma análise mais precisa, consideram-se os Tarairiú como uma família linguística isolada, subdividida em vários grupos menores, como Paiaku, Janduí, Genipapo, Kanindé, Korema, dentre outros. Dente os autores que partilham essa opinião estão Lopes (2003) e Apolinário (2009). (VICENTE, Marcos Felipe. “NÃO TEM FEE NEM LEY NEM PIEDADE”: UM ESBOÇO ETNO-HISTÓRICO SOBRE OS PAIAKU E OUTROS POVOS TARAIRIÚ NOS SERTÕES DO NORTE. Fronteiras: Revista de História, Dourados, MS, v. 18, n. 32, p. 197 – 214, Jul. / Dez. 2016).
Há 400 anos…
No antigo território cearense, viviam cerca de vinte e dois Povos lndfgenas (Séc. XVI), cada um com idioma próprio.
Faziam parte desses povos:
Tarariú (Kanindé, Paiakú, Genipapo, Jenipabuçú, Arariú, Anacé, Karatiú... ).
Kariri (Kaririagú, Kariú ...). (CORDEIRO, José. Os índios no Siará: massacre e resistência.Fortaleza, Contexto, 1989. p. 13)
Studart Filho (1965. p. 88) menciona como Tarairiú os "Tocariús ou Tusurijus" (que, creio, sejam os mesmos chamados no Piauí de Tocarijus ou Tacarijus. Ora, se de um lado, os Alongás têm como vizinhos em solo piauiense os Jenipapo, do outro lado os seus vizinhos são os Tacarijus. Se, ambos, Tocarijus e Jenipapo, são Tarairiú, seria muito estranho que os Alongás não o fossem. Até creio que o eram também os Anaçus (ou anassus) que viviam com os Alongás. Sônia Maria Campelo Magalhães (2011) defende a idéia de que os Alongás e os Tocarijús eram Tarairiús..
Apesar de já há muito tempo pesquisadores de outros estados, a exemplo de Studart Filho, falarem na presença de Tarairiús no Piauí, o que se vê, da maioria dos autores piauienses que trataram do tema, é que só há bem pouco tempo passou-se a falar da nação Tarairiú e de sua presença no Centro-Norte piauiense. Antes, no mais das vezes, os indígenas desse grupo étnico eram aqui tratados como Cariri ou Tremembé. Contudo, apesar das semelhanças culturais, as diferenças eram tantas que obviamente Alongás (comedores de gente) e Tremembés, não podiam ser do mesmo grupo étnico. É por isso que resolvemos seguir o entendimento de que sejam Alongás, Tocarijús e Jenipapos, de fato, Tarairiús. Inclusive sua localização espacial, ressalte-se, coincide com a apontada por Studart Filho (1965) como o lugar em que viveriam, no Piauí, indígenas Tarairiú.
Ainda sobre a localização dos Tarairiú:
O grupo Tarairiú estendia os seus domínios sôbre a larga área territorial que, partindo das proximidades das praias norte-riograndense, subjugadas por tribos tupis, alcançavam os sertões do Ceará e Piauí. (Studart Filho. Os Aborígenes do Ceará, 1965, p. 81-82)
Muitas outras tribos que habitavam o Nordeste, principalmente nos vizinhanças dos rios São Francisco e Parnaíba e afluentes principais dêste falavam idiomas inteiramente desconhecidos. Alguns eram provàvelmente Gê, como Cupequa-ka, Kupixere e Kupinharó. Outras seriam, ao que parece, Tarairiú como a dos Macamaçu, Ayitetu, Anicu, etc. Na região do São Francisco, com exclusão das tribos Fulniô e Cariri, viviam outras que ainda não foram determinadas. Estas tribos de falar desconl1ecido, seguramente, teriam sido mais numerosas do que ordinàriamente se supõe. Acreditamos que algumas eram provàvelmente Tarairiú. (POMPEU SOBRINHO, Thomaz.Línguas Tapuias desconhecidas do Nordeste: alguns vocabulários inéditos. 1958. p. 8)
Se no Piauí os Tarairiú habitavam a região da bacia do Parnaíba e seus afluentes, como se vê em Pompeu Sobrinho (1958), é de se ver que o Longá, onde habitavam os alongazes, é afluente do Parnaíba, e, por sua vez, o Surubim, que nasce em Altos, é afluente do Longá. Ademais, os Alongás eram vizinhos dos Jenipapo e dos Tacariju, que eram Tarairiú, como se viu.
Até chego a concordar que os Tremembé sejam uma etnia à parte e não pertençam ao ramo Cariri, mas não vejo como dizer que os Alongás possam ser gamelas ou mesmo Cariri, e muito menos Tremembés, pois de acordo com o relato de Miguel de Carvalho na "Descrição do Sertão do Piauí" (1697) os nongazes (que eu acredito serem os Alongás) que viviam em rio que corria para o Parnaíba (que eu acredito ser o Rio Longá) eram brancos. Ora, os Cariri não praticavam o canibalismo, Também não tenho notícia de que os Gamelas o fizessem. Mas os Tarairiú praticavam o endocanibalismo e a antropofagia contra os inimigos da tribo:
O endocanibalismo figura entre os elementos culturais peculiare$ aos Tarairiús, quando a mulher está para dar à luz, procura o mato e, assim que pare, corta, com uma concha, o cordão umbilical, que depois, cozinha e come juntamente com a placenta. Também se devora o corpo da criança nascida morta. Herckman vai além, afirmando que o endocanibalismo incluía os próprios adultos, pois o guisado (diziam os índios) não poderia ser melhor guardado do que no corpo dos companheiros. Antes dêsse ritual, o cadáver era lavado, assando o corpo em uma fogueira previamente armada. Algumas vêzes, guardavam-se os ossos para outras ocasiões, depois de reduzidos a pó e misturados à farinha ou dissolvidos em água. Os tuxauas, ou principais, eram, todavia, devorados apenas por suas mulheres ou por outros chefes. O luto perdurava até que, fôssem. ingeridos os ossos pulverizados. (Studart Filho, 1965, p. 85)
Também era praticada a antropofagia contra os inimigos da tribo, os quais eram dilacerados por feroz vingança. (MEDEIROS FILHO, Olavo de. OS TARAIRIÚS, EXTINTOS TAPUIAS DO NORDESTE. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de; GALINDO, Marcos; SILVA, Edson. Índios do Nordeste: temas e problemas. Maceió: EDUFAL, 1999. p. 244-254)
Além dos Tarairiú, no Centro-Norte Piauíense, ao que sabemos, somente os Tremembés praticavam o canibalismo:
Referências desabonadoras aos Tremembés encontramos, ainda, na carta mandada de São Luís por Frei Cristóvão de Lisboa ao Padre Manuel Severim de Faria, em 2 de janeiro de 1627. Que nos baste transcrever dêste relato o tópico seguinte, para têrmos uma idéia de quanto êles eram bravios: "Morrer pelejando como homem com os selvagens Tremembeses que gritavam que nos haviam de comer." (Studart Filho, 1965, p. 74)
Acreditavam que as boas qualidades dos prisioneiros passariam para quem os comesse. O Frei André de Thevet descreveu páginas de grande vigor, que mostram de maneira real, a forte impressão que nele produziu o conhecimento de tais práticas: “executavam a vítima como se fosse um porco; a porretadas”. Ao chegar à aldeia, o prisioneiro tinha que falar: - aqui chegou a sua comida. As mulheres raspavam sua sobrancelha e dançavam de alegria. O guerreiro dizia: - quero matar você, pois sua gente matou nossos amigos; pulava para trás do preso e dava com a ibirapema na cabeça do cativo, pondo-lhe os miolos para fora. As mulheres arrastavam o morto para a fogueira e raspavam-lhe toda a pele. Os membros eram comidos pelas mulheres, o cérebro e a língua ficavam com as crianças. Das vísceras era feito um mingau. O ritual se encerrava com honras ao guerreiro-carrasco, que trocava de nome e recebia uma cicatriz feita pelo cacique com o dente de um animal selvagem. Recebia também uma pulseira feita com os lábios do morto. Comiam seus inimigos mortos, pois a terra não era digna de os apodrecer. (…).(MAVIGNIER, Diderot. NO PIAUHY, NA TERRA DOS TREMEMBÉS. Parnaíba, PI: SIEART, 2005. p. 10-19)
Todavia, apesar dos Tremembés viverem próximos dos Alongazes e Tocarijus, com quem mantinham relações pacíficas no mais das vezes, é de se ver que os Alongazes, além de viverem em território que Studart Filho aponta como sendo Tarairiú, viviam ladeados pelos Jenipapo e Tocarijus (os quais apontam alguns autores que seriam Tarairiús). Dessa forma, compreendo que assiste razão a Sônia Maria Campelo Magalhães (2011), ao classificá-los Tarairiú, juntamente com os Tocarijús. E, por força das circunstâncias, creio que também o sejam Tarairiú os Anaçus, que viviam com os Alongás. Historicamente, inclusive, se aponta que tanto Jenipapo, quanto Tocarijus e Anaçus, em um ou outro momento, teriam se aliado aos Alongás, combatendo ao lado deles. Ou mesmo migrando para refúgios contra os inimigos ao lado deles.
Por outro lado, apesar dessa constância de vizinhança entre os Tarairiú e os Tremembé (ou por vezes os Cariri), talvez a paz não fosse tão constante entre eles, ou ao menos entre os indígenas que habitavam a região de uma forma geral. Se não havia propriamente conflito entre eles, o que não se elimina a possibilidade, havia certamente litígio entre eles e outras tribos Tapuia, bem como com indígenas Tupi, como, não é demais lembrar, nos aponta Cláudio de Melo, na obra OS PRIMÓRDIOS DE NOSSA HISTÓRIA:
Eram senhores destas várias paragens algumas tribos indígenas, geralmente de sangue tapuia, cuja ferocidade contra os brancos não se percebeu senão no caso isolado dos portugueses, e, de maneira duradoura, só naquele período que lhes fizeram caça a arma de fogo. Esses índios "viviam muito isolados em pequenas tribos distintas e independentes umas das outras, fazendo-se guerra entre si e sempre às tribos tapuias" (THEBERGE, Dr. Pedro. Esboço Histórico sobre a Província do Ceará. Fortaleza: Henriqueta Galeno, 1973, p. 19). (MELO, Padre Cláudio. Os Primórdios de Nossa História. In: MELO, Padre Cláudio. OBRA REUNIDA. Coleção Centenário, 103. Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2019. p. 257)
Studart Filho (1965) também destaca que os Tarairiú viviam envoltos em conflitos:
A impressão do nomadismo dos tapuias, deixada entre os holandeses, explica-se pelo fato de viverem os Tarairiús, por êsse tempo, em plena guerra (p. 83).
Pompeu Sobrinho (1951) também informa o envolvimento dos Tremembés em guerras contra outras tribos, em especial os Tupinambá. (POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Índios Tremembés. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza: Instituto do Ceará, n. 65, 1951, p. 237-265). Igualmente, ainda, se lê de Studart Filho (1965), sobre o envolvimento dos Cariri em atividades de guerra (op. cit. p. 58-67). Assim, não se vê notícia de que dentre os grupos indígenas que habitaram o centro-norte do Piauí, que não tenham eles se envolvido em atividades bélicas, tanto contra outros indígenas no período pré-colonial, como contra os europeus no período colonial. As tribos do centro-norte do Piauí eram formadas por bravos guerreiros, que tanto guerreavam contra outros indígenas, como, mais tarde, ofereceram forte resistência contra o homem branco (colonizador europeu).
Talvez a mais antiga menção dos Tapuias que habitavam o Piauí se veja, ainda em 1587, quando Gabriel Soares de Sousa, no seu Tratado descritivo do Brasil mencionava o rio Parnaíba como Rio Grande dos Tapuias, dado o grande número de tribos tapuias ao longo do rio, em especial os Tremembés, que habitavam a região do delta e eram os primeiros a ser vistos pelos navegantes da costa.
Os Tapuia, de uma forma geral, por todo o país viviam próximos do litoral, sendo muito mais antigos no domínio da faixa litorânea, até serem removidos dali com a chegada dos povos Tupi, que conquistaram a maior parte da costa litorânea brasileira, sendo os Tapuia, em sua maioria, empurrados para o interior depois que chegaram ao litoral os povos Tupi, apenas conservando, domínio litorâneo algumas exceções ao domínio Tupi, como ocorreu no litoral piauiense, onde os Tremembés, predominaram na faixa litorânea e mesmo com a chegada dos Tupi conseguiram conservar seu domínio por ali, em especial na região do delta do Parnaíba. Sempre próximos dos Tremembés, mais para o interior do Estado, ainda ao norte, os Tarairiú, que também tiveram desavenças com os Tupi, especialmente os Tabajara.
Quando falamos em Tapuias, na verdade, falamos de povos diversos, com diferentes línguas, costumes, tradições, culturas, etc. Não há uma unidade étnica entre eles. Não são um mesmo povo. O que os une, de uma forma geral, sob a designação de Tapuias, é não falarem a língua geral dos Tupi. Dessa forma, depois de aqui discorrermos sobre eles de uma forma geral, nos textos que se seguirão, apresentaremos as diferentes famílias culturais Tapuias (e seus sub-ramos) que habitaram o Centro-Norte do Piauí, em regiões que compreendem o atual território de Altos e cidades vizinhas, esmiuçando a sua história.
Para saber mais:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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